top of page
Buscar

Circe: Origem, Culto e Estatuto Religioso na antiguidade

A figura de Circe é uma das mais antigas e complexas do imaginário greco-romano. Conhecida sobretudo pela Odisseia, ela reúne elementos de divindade arcaica, ninfa poderosa, agente ritual e heroína cultuada em locais específicos. Este artigo apresenta uma análise baseada em fontes primárias (Homero, Hesíodo, Estrabão, Cícero) e estudos secundários consolidados, buscando esclarecer sua classificação religiosa, possíveis origens e vestígios de culto.


1. Origem mítica e posição na genealogia divina


As genealogias mais antigas registradas situam Circe como filha do titã Hélio e da oceânide Perse (Hesíodo, Teogonia, 956–962). Essa ascendência a coloca entre as divindades pré-olímpicas, grupo que inclui vários deuses e daímōnes associados a funções naturais e rituais.


Na Odisseia, Homero refere-se a Circe como theá, “deusa” (10.135; 10.210). A terminologia homérica não emprega esse título para personagens humanas, o que confirma que, literariamente, Circe é apresentada como um ser plenamente divino.


A associação posterior de Circe com a linhagem de Medeia (tradições relacionadas à Cólquida) reforça seu papel dentro de um conjunto de figuras femininas dotadas de conhecimento mágico, farmacológico e transformador, muitas vezes interpretadas como remanescentes de tradições religiosas mais antigas do Mediterrâneo.


2. A caracterização de Circe na literatura grega


A literatura arcaica e clássica apresenta Circe como detentora de três atributos fundamentais:


2.1. Conhecimento de plantas e fármacos


Circe é descrita como polypharmakos, conhecedora de múltiplos fármacos (Odisseia, 10.234). O termo phármakon abrange tanto medicamento quanto veneno, indicando domínio de uma ciência ritual de grande antiguidade.


2.2. Poder de metamorfose


A transformação de homens em animais, um dos elementos mais conhecidos de seu mito, é uma capacidade atribuída apenas a seres divinos ou semi-divinos na literatura grega. Não existem paralelos convincentes entre ninfas comuns e esse tipo de poder.


2.3. Regência sobre espaço liminar


A residência de Circe, situada na ilha de Aiaia, possui estrutura e características de espaço sagrado: animais mansos, fronteira clara entre interior e exterior, e hospitalidade ritualizada. Esses elementos reforçam seu status de divindade liminar, atuante em territórios de passagem ou transição.


3. Evidências de culto: Grécia e Itália


Embora não existam grandes centros pan-helênicos dedicados a Circe, há duas tradições claras de culto, uma grega e outra itálica.


3.1. O túmulo em Pharmakoussai (Grécia)


Estrabão (10.1.15) registra que, em uma das ilhas Pharmakoussai, era mostrado o “túmulo de Circe”. Túmulos atribuídos a personagens míticos frequentemente funcionavam como heroa, locais de culto heroico. Isso não a rebaixa ao estatuto humano; várias figuras divinas receberam culto heroico em contextos locais.


3.2. O santuário em Circeii (Lácio, Itália)


O testemunho mais decisivo está no Lácio. Estrabão (5.3.6) menciona um templo de Circe no promontório de Circeii (atual Monte Circeo). Cícero, em De natura deorum (3.48), afirma que Circe era cultuada com devoção pelos colonos locais.


Escavações no Monte Circeo identificaram um grande complexo republicano interpretado por diversos arqueólogos italianos (La Regina, Bloch, dentre outros) como santuário dedicado a Circe. Embora não haja estátuas preservadas que confirmem sua iconografia, a tradição textual e o contexto arqueológico apoiam a existência de um culto estruturado.


A evidência itálica é suficientemente forte para caracterizar Circe como divindade local venerada.


4. Classificação religiosa de Circe


Circe ocupa uma posição intermediária, típica das divindades femininas pré-olímpicas que combinam funções diversas.


4.1. Como deusa (theá)


A literatura arcaica emprega esse termo diretamente, e seu poder narrativo é comparável ao de outras divindades plenas. A genealogia reforça essa classificação.


4.2. Como potência liminar (daímōn)


Seu papel como transformadora, guardiã de um espaço isolado e agente de iniciação simbólica (a passagem de Odisseu pela ilha) é semelhante à atuação de daímōnes femininos relacionados a ritos de transição.


4.3. Como heroína cultual


Em Pharmakoussai, Circe recebe culto do tipo heroico, prática comum na religião grega para figuras que possuíam estatuto divino em alguns contextos e heroico em outros. Esse fenômeno não é contraditório; é parte do funcionamento fluido da religião antiga.


A partir das fontes disponíveis, Circe deve ser entendida como:


uma divindade menor de origem arcaica, posteriormente integrada ao sistema religioso greco-romano, com cultos locais ativos sobretudo no Lácio.


5. Possíveis origens e substratos culturais


A circulação de motivos mitológicos e práticas religiosas sugere que Circe possa derivar de um substrato mais antigo do Mediterrâneo:


Tradições egeias pré-helênicas: domínio feminino sobre plantas, animais e metamorfose.


Influência anatólio-colquiana: parentesco narrativo com Medeia, região associada a práticas xamânicas e farmacológicas.


Camadas itálicas antigas: a força do culto no Lácio indica que Circe foi assimilada cedo pelas populações locais, possivelmente como deusa ligada a colinas, águas costeiras e ritos femininos.



Embora não seja possível reconstruir um culto pan-mediterrânico, a presença simultânea de elementos gregos, egeus e itálicos sugere que Circe preserva traços de uma divindade pré-clássica, posteriormente moldada pela poesia.


6. Conclusão


Os dados literários, epigráficos e arqueológicos permitem estabelecer um quadro coerente:


1. Circe é apresentada como deusa na literatura arcaica.



2. Sua genealogia confirma natureza divina.



3. Há evidências concretas de culto, especialmente em Circeii.



4. Pode receber tratamento heroico em determinados contextos, sem perda de seu estatuto divino.



5. Sua função principal é a de divindade liminar, atuante na transformação, cura, manipulação vegetal e proteção ritual.




Assim, Circe deve ser classificada como uma divindade menor plenamente integrada ao imaginário religioso greco-romano, cuja figura preserva elementos de tradições religiosas femininas muito antigas.



Referências essenciais


Homero, Odisseia.


Hesíodo, Teogonia.


Estrabão, Geografia.


Cícero, De natura deorum.


Burkert, W. Greek Religion.


Yarnall, J. Transformations of Circe.


Ogden, D. Magic, Witchcraft and Ghosts in the Greek and Roman Worlds.


La Regina, A. Il Lazio antico.


Bloch, R. I santuari del Lazio antico.


 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Como se conectar com a deusa Hecáte?

Honra Diária: Como os Antigos Honravam os Deuses (e o Culto à Hécate) Na Grécia Antiga, a religião não era uma ocorrência isolada, reservada apenas para grandes festivais anuais. Ela estava intrinseca

 
 
 

Comentários


bottom of page