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Biblioteca Estelaris - Estudos e Textos

Público·2 membros

A maldade da escuridão? O ventre do universo e o equívoco humano diante do invisível

A ideia de que a escuridão é sinônimo de maldade é uma das mais persistentes deformações simbólicas do pensamento humano.


Ela não nasceu com os deuses, nasceu com o medo.


O medo daquilo que não pode ser visto, previsto ou controlado. A luz, para o homem, sempre representou o domínio do conhecido, do ordenado, do que está sob vigilância; a sombra, em contraste, tornou-se o território do indomado, do feminino, do intuitivo, do mistério.


Com o tempo, essa distinção deixou de ser apenas cosmológica e se transformou em moral. A noite foi convertida em metáfora do mal.

Contudo, o universo e a própria história da espiritualidade humana não sustentam essa leitura.



O universo é escuro


Do ponto de vista cosmológico, a escuridão não é ausência de luz: é a própria substância da realidade.

Os dados mais recentes da cosmologia observacional (Planck Collaboration, 2020; NASA, 2023) indicam que apenas cerca de 5% do universo é composto por matéria luminosa, aquilo que podemos ver, medir ou tocar.


Os 95% restantes são formados por matéria escura e energia escura, entidades que não emitem nem refletem luz, mas cuja presença é inferida pelos efeitos que exercem sobre a estrutura do cosmos.


A matéria escura constitui aproximadamente 27% do universo e funciona como uma malha gravitacional invisível que mantém as galáxias unidas.


Sem ela, os aglomerados de estrelas não teriam massa suficiente para se sustentar; a Via Láctea, por exemplo, se dispersaria em questão de milhões de anos.

Essa matéria invisível é o esqueleto do cosmos, aquilo que sustenta, em silêncio, o espetáculo da luz.


A energia escura, por sua vez, representa quase 68% de tudo o que existe.


Ela é responsável pela aceleração da expansão do universo, descoberta no final dos anos 1990 (Perlmutter, Riess e Schmidt, Astrophysical Journal, 1999).

Sua natureza é ainda mais misteriosa do que a da matéria escura: trata-se de uma força presente em todos os pontos do espaço, uma pressão negativa que empurra o tecido do cosmos para fora, ampliando o vazio e afastando as galáxias umas das outras.


Portanto, quando dizemos que o universo é escuro, não estamos falando de metáfora, mas de fato físico.


A luz, na escala cósmica, é exceção.

O escuro é a regra e mais do que isso, é o campo onde o ser se organiza.


A matéria escura mantém o universo coeso; a energia escura garante que ele continue vivo, em expansão.

Ambas operam como duas faces de um mesmo princípio: a estrutura e o movimento, a estabilidade e o impulso.


Em linguagem simbólica, poderíamos dizer que são o Yin e o Yang do cosmos, forças complementares e interdependentes.


O que as antigas cosmologias já sabiam


Os antigos não possuíam telescópios nem aceleradores de partículas, mas sabiam que o escuro era a origem de tudo.


Na Teogonia de Hesíodo, o primeiro princípio é o Caos, seguido por Nix, a Noite.


Dela nascem o Éter e Hemera, o dia.

A luz, portanto, não surge como oposto do escuro, mas como sua filha.

No pensamento órfico, Nix é chamada de Mãe dos Deuses, a deusa alada que abriga em seu ventre o Ovo Cósmico, de onde emerge Fanes, o deus luminoso. A luz nasce da sombra, e não contra ela.


No Egito, o mesmo padrão se repete: do oceano noturno do Nun ergue-se o deus Atum, que cria o mundo ao sair das águas escuras.

Na teologia hindu, Kali, cujo nome significa literalmente “negra” ou “tempo”, é a face destruidora e regeneradora da Deusa. Ela representa o aspecto inevitável da dissolução, sem o qual não há renovação possível.


A escuridão, nesse contexto, não é ausência de vida, mas o poder que a reinicia.


Algumas religoes orientais, por sua vez, descreve a totalidade do real através da polaridade Yin e Yang.


O Yin é o princípio da sombra, do repouso, do silêncio e da gestação; o Yang é o princípio da luz, da ação e do movimento.


O Tao Te Ching (cap. 42) ensina que do Yin e do Yang surgem “as dez mil coisas”, isto é, todas as manifestações da existência. Luz e sombra não são inimigas: são o ritmo respiratório do cosmos.


Mesmo o budismo Mahayana compreende o escuro como parte essencial da consciência.

O śūnyatā, o vazio, não é o nada, mas o campo de potencialidade onde tudo se manifesta.


A mente iluminada não rejeita o escuro: ela o reconhece como o próprio pano de fundo do ser.



O equívoco ocidental


O Ocidente foi o único a transformar a escuridão em símbolo de maldade.

A partir do dualismo platônico e, mais tarde, da teologia cristã, luz e sombra passaram a representar polos morais: bem e mal, Deus e diabo, verdade e ignorância.


Essa leitura moralizante do cosmos é uma ruptura profunda com as tradições anteriores. Ela nasce de uma tentativa de impor ordem sobre o indomável, e acaba por amputar metade da experiência humana.


No imaginário patriarcal, a luz tornou-se atributo do logos, da razão, do masculino e do domínio; a sombra, associada ao corpo, à intuição e ao feminino, passou a ser vista como ameaça.


O escuro foi, então, demonizado.

Deusa após deusa, mito após mito, o poder da noite foi degradado até tornar-se sinônimo de pecado.

Mas essa leitura reflete mais uma patologia cultural do que uma verdade espiritual.


A psicologia moderna confirma o que os antigos sabiam: o escuro é parte integrante da psique. Carl Jung chamou de “sombra” o conjunto de conteúdos que o ego rejeita.

Ignorá-la é um erro perigoso; integrá-la é o caminho da totalidade.

O mal, portanto, não é a escuridão, mas a recusa em conhecê-la.




A noite como processo


A escuridão é o estado de latência anterior à forma, na natureza, na alma e no cosmos. É nas regiões mais densas e frias do espaço que as estrelas nascem. É na ausência de luz que o hidrogênio se comprime e acende.


A vida, tanto biológica quanto espiritual, repete o mesmo ciclo: gestação no escuro, explosão em luz, retorno ao silêncio.


O universo não se expande “apesar” da escuridão, ele se expande por causa dela.


A energia escura, onipresente e invisível, é o fôlego da criação.

Ela nos obriga a reconhecer que o invisível é a verdadeira substância do real.


Assim como no macrocosmo, o mesmo se aplica ao microcosmo: as transformações mais profundas da alma acontecem na ausência de claridade.


Toda iniciação, seja teúrgica, mística ou psicológica, começa na descida.

A noite é o laboratório da consciência.



Conclusão


O erro humano não foi temer o escuro, o erro foi chamá-lo de inimigo.

A escuridão não é maligna.

É o estado primordial de onde toda luz se origina, o espaço de gestação da forma, o campo onde repousa a potência do ser.

Ela não nega a luz: a contém, a sustenta e a renova.


A física moderna, o taoismo, o hinduísmo, o orfismo, o budismo e as cosmologias africanas convergem na mesma afirmação: o escuro é a matriz da realidade.

Negá-lo é amputar o universo pela metade.

Aceitá-lo é compreender que a luz não é a negação da noite, mas o seu florescimento.


Quando olhamos o céu e vemos estrelas, vemos apenas as exceções.

O resto, quase tudo, é escuridão e desconhecido.

E talvez seja essa a lição final: o cosmos, a alma e o divino têm a mesma natureza.

Ambos brilham por dentro da sombra.


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